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crónica de”ninguém”

Um dia, estava eu muito sossegada, sentada num banquinho a comer pão com manteiga. À minha volta ecoavam frases feitas. Bem intencionadas e bem direcionadas. Quem quer que as tivesse cozinhado tinha acertado no tempero. Pelo menos, assim parecia. A que mais ouvia era: “Trabalha. Estuda. Um dia serás alguém.” Aquilo ficou-me. Então, também quis ser alguém.

Passou tempo e mais tempo e não havia meio de me parecer que já estivesse a ser alguém. Desde a escola primária aos estudos mais adiantados, nada. Tudo normal. Comecei a trabalhar, a mesma coisa. Começava a inquietar-me com este atraso. E se nunca chegasse a ser alguém? Vivia em pânico.

Mas, um dia tudo mudou. Fizeram-me Alguém. Foi por decreto. Comuniquei de imediato ao Mundo. Estava a ver que era ali que o Mundo se rendia a meus pés. Parecia mesmo. Afinal, verificou-se depois, eu estava mesmo a precisar era de óculos. Mas lá no bairro, na paróquia e no meu prédio era um orgulho terem-me entre eles. Bem feito pró Mundo que me ignorou! Só que não tardou que viessem as invejas. As macumbas. Sofri. E, num dia, sem dar conta, retiraram-me da lista dos “Alguéns”. Também por decreto. Agora era outra vez Ninguém. Fiquei a pensar no acontecido. Dias e dias de reflexão aturada e estuporada, acompanhada de bules e bules de chá de tília. Cheguei-me a uma estante e escolhi um livro de autoajuda. Li um parágrafo. Percebi tudo.

Afinal, quantos “Alguéns” há neste mundo? Tantos, que nem é bom falar. E “Ninguéns”? Pensei um bocadinho e enumerei os que conhecia: Ulisses, o Romeiro de Almeida Garret e, agora EU.

Toma, Mundo! Quem ri por último, ri melhor!

17 thoughts on “crónica de”ninguém””

      1. não é grandeza, é que sou fã de bossa nova… se eu não conhecesse, passaria vexame 😀

      2. há palavras assim, que causam boa impressão. tenho em casa um livro sobre estilística da língua portuguesa que traz alguns exemplos de palavras que causam boa impressão sonora a estrangeiros. uma delas é “menina”. 🙂

      3. eu gosto de tantas ditas assim com essa musicalidade…descobertas na música que daí vem, e até nas novelas, que, para mim, não são género menor. gosto de tantas, mas tantas. 😀
        as expressões de “sinhôzinho malta” do “prefeito de sucupira” da novela “gabriela”…ficaram e são muitas repetidas. eu tenho um acervo delas!!! 😀

      4. pois é, muita gente elogia a palavra “saudade”, mas é pelo conteúdo, não pela sonoridade. quanto aos nomes que vc cita, Dias Gomes realmente gostava de nomes assim. 🙂

    1. Interessante. Pelo visto, não foi só o livro escrito por outrem. Tudo indica que o prefácio também…

    1. tens razão, GM. Mas isto do “Ninguém” sempre me fascinou na literatura, embora eu não conheça muito, mas quando Ulisses diz a Polifemo que o nome dele é “Ninguém” safou-se assim, de morte certa por parte dos ciclopes, e depois, o “Ninguém” na pessoa do romeiro (D. João de Portugal) do Frei Luís de Sousa, quando lhe perguntam quem é, e ele, naquela voz grave (no filme) responde “Ninguém” …que queres? fascina-me!
      🙂

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